Memorial do terrário [I]

Thainá Carvalho
2 min readJul 6, 2021

thainá carvalho

(O segundo sol — colagem digital, Thainá Carvalho)

Buscar em mim a memória.

E o que seria isso exatamente?

Tenho, sim, lembranças. Muitas, espalhadas por mim. Tenho essa espera na janela do banheiro do quarto dos meus pais — a melhor vista da casa. Meus dez anos cabiam ali, sentados sobre a pia de mármore branco, olhando pelas grades um céu azul, recortado aqui e ali por pequenos prédios e casas de dois andares, como a minha. No fundo de tudo, no âmago, o rio. Sempre ele, extenso e vivo. Às vezes, parecia existir demais, o ponto de tensão em qualquer vista da cidade. Outras vezes, parecia quase não ser, de tão guardado já no mapa dos nossos olhos. De uma forma ou de outra, o rio sempre estava ali.

(muito anos depois, viria a percorrer o rio sozinha em um pequeno catamarã que finjo dominar — como tudo na vida. Parei em um ponto do rio para tentar me ver pequena, olhando pela janela da casa alta e rosada. apertei os olhos, muito sol. não me enxerguei. segui o curso d’água.)

Esperava algo naquela janela. Uma mudança drástica, um como que para sempre. Meio divino, meio desenho animado. A alteração não veio, pelo menos não essa de susto, coisa repentina. Outras vieram, no passo largo das horas que transformam a infância em lembrança.

Mas essa ânsia sob o sol de fim de tarde, criancice, talvez explique a paz que sinto hoje com o voo das aves. Avistava muitas delas, passando sobre a casa e indo em direção ao rio. Calmas, certas, asas alinhadas ao sol. Elas sabiam seus caminhos, as lufadas de vento sob as penas. Retilíneas, em formato de v, seguiam ao encontro de qualquer coisa que eu desconhecia.

E desconheço. Não sendo os mesmos pássaros que avisto hoje da minha varanda, permanecem iguais seus caminhos, suas certezas. O céu guia, eu digo para mim mesma como uma prece. O céu guia, desde muito antes do nascimento dos meus anseios. Disso sabem elas, as aves, pacíficas como eu.

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Thainá Carvalho

Escritora, curadora e revisora. “As coisas andam meio desalmadas” (Penalux, 2020). Editora da Revista Desvario e coorganizadora do Sarauema. ig @oxente_thaina