Um terror que apenas as mulheres podem compreender

Thainá Carvalho

--

a estreia de Zoë Kravitz como diretora no filme Blink Twice

Pensei que seria um filme razoavelmente leve para um fim de tarde de domingo, mas me enganei completamente. Um Sinal Secreto (Blink Twice) traz a história de Frida (Naomi Ackie), integrante de uma equipe de buffet de eventos de alto nível, que, juntamente com sua amiga Jess (Alia Shawkat) e um aparente acaso, se vê convidada pelo CEO Slater King (Chaning Tatum) para uma estadia idílica em sua ilha exclusiva com alguns amigos e companheiras, sem acesso a celulares. Após alguns dias de maravilhas luxuosas, regadas a bebidas e drogas diversas, o paraíso vai se tornado um inferno onde todas as mulheres envolvidas se descobrem desmemoriadas devido a uma substância inserida no perfume-presente que usavam e, em decorrência disso, abusadas diariamente pelos homens da “festa”.

Impossível assistir ao longa de estreia de Zoë Kravitz como diretora e não se lembrar imediatamente do sofrimento da francesa Gisèle Pelicot. Ou ainda dos recentes casos que vieram à tona envolvendo o escritor Neil Gaiman. O absoluto terror se inicia no filme quando Frida, desesperada pelo desaparecimento de sua amiga, e pelo fato de que ninguém parecia se lembrar dela, começa a conversar com Sarah (Adria Arjona), que aparentava ser uma namorada sem paciência de Cody (Simon Rex), amigo de Slater. Além de perceberem manchas sem explicações em seus corpos, elas descobrem que nenhuma das duas conhecia de fato aqueles homens até poucos dias antes da viagem e percebem a bobagem que fizeram ao aceitar um convite para se isolar em uma ilha com eles. Nesse exato momento, elas se sentem loucas e culpadas. O terror tão comum de toda mulher.

Enquanto no início do filme, Frida e Sarah competiam sutilmente pela atenção de Slater, a partir dessa conversa entre as duas são iniciadas as tentativas de solução da situação. A transição da inimizade para a união, dos príncipes para os monstros, do sonho para o pesadelo é feita de forma chocante e nenhuma cena parece mais ter a mesma iluminação ou ambientação. Zoe utiliza a câmera com inteligência para fazer a coesão entre felicidade e terror, sentimentos tão distintos vividos por essas mulheres. Quanto tudo parece estar bem, Slater e Frida conversam descontraidamente deitados na grama enquanto a câmera gira vagarosamente do sentido horizontal ao vertical, criando uma sensação de mormaço e relaxamento. Em uma cena posterior, na qual os abusos são escancarados, o corpo de Frida é girado no sentido contrário por dois homens, e aqui a câmera gira violentamente para deixar subtendido o que ambos fizeram a ela. Em um recurso mais comum, de aproximação com câmera lenta, Frida observa apavorada um pingente de ouro balançar sobre o peito de Slater, viajando mentalmente de um jantar tranquilo na varanda para uma das noites em que é abusada com o movimento do pinente de Slater sobre seu corpo.

(fonte: IMDB)

Um detalhe importante é que as cinco mulheres levadas para a ilha representam perfis arquétipos diversos: temos duas economicamente vulneráveis, uma hábil fisicamente, uma CEO e uma ‘tresloucada’. Absolutamente todas são seduzidas para estarem naquele lugar e nenhuma deixa de ser dopada e abusada, mostrando que, embora determinadas condições sociais contribuam para relações de abuso de poder, a imposição da dominância pode se dar sobre qualquer mulher tendo em vista a estrutura predatória e onipresente da misoginia. Por outro lado, essa estrutura se alimenta em grande parte da impunidade para os homens que, no caso do filme, se dá não apenas pelo favorecimento histórico ao gênero masculino quanto também pelo próprio esquecimento impetrado às mulheres. Não à toa, toda a viagem é fotografada em detalhes com uma câmera polaroid e isso não aparenta ser um risco para eles. Entretanto, quando as mulheres se lembram das atrocidades que sofreram, parecem ganhar força porque naquela ilha não há nada que proteja os homens do choque imediato de se perceberem passíveis de retaliação. Eles simplesmente correm, fracos e covardes, esquecendo que possivelmente teriam um domínio físico sobre as mulheres enquanto elas, tomadas pelas próprias violências que sofreram, dotam-se de uma raiva descomunal e conseguem inclusive matar alguns dos abusadores. Um outro arquétipo é o de Stacy (Geena Davis), a assistente submissa de Slater que nega a memória do seu sofrimento.

O filme é extremamente doloroso e revira o estômago, com as cenas de abuso sendo tratadas de forma que não exploram visualmente o corpo feminino. Um destaque vai para um close de Chaning Tatum encenando maniacamente uma série de pedidos de desculpas consecutivos, ressaltando a hipocrisia do homem que comete uma atrocidade, bem como a ilusão do perdão e a bênção do esquecimento para lidar com o trauma. Outro ponto positivo são os flashes rápidos (jequiti vibes) de algumas situações que ocorreram nas noites dos abusos e que permanecem sem explicação específica, contribuindo para o cenário de loucura e dúvida. Algumas lacunas que fazem sentido apenas após o final do filme não são mastigadas pelo roteiro em uma recapitulação. O espectador também deve trabalhar o seu próprio esquecimento.

O final em si se propôs a ser arrebatador mas subestimou, e muito, as consequências do trauma, contribuindo para a simbologia da mulher invencível. Um final mais ao estilo de O Menu ou Casamento Sangrento poderia ser igualmente interessante. De qualquer forma, Zoë entregou um filme incrível que muitos homens poderão até entender, mas do qual apenas as mulheres compreenderão o terror.

--

--

Thainá Carvalho
Thainá Carvalho

Written by Thainá Carvalho

Sergipana. Escritora, curadora e colagista. Editora da Revista Desvario. @oxente_thaina.

No responses yet